Resenha

José Luiz Barbosa, aposentado da Gráfica do Senado, escreve sobre o dia a dia do paciente com bipolaridade.
25/03/2024 14h37

José Luiz Barbosa escutava atento à programação da tarde de Reencontro, destinada aos aposentados do Senado na sede do Sindilegis. Eu, assessora de comunicação do SIS, ainda longe de me aposentar, sempre vou aos eventos em busca da oportunidade de falar mais sobre o funcionamento do plano de saúde. Ando pelo salão, sento numa mesa, ouço uma história aqui outra acolá de quem estava doente ou precisa de autorização para um exame. Por fim tento resolver as demandas.

A essa altura o sorriso largo do Zé Luiz me convida a bater um papo. Sento ao lado e logo ele me conta que escreveu um livro, informação que me agrada porque por formação e paixão também escrevo. O título da obra imediatamente me atrai: Memórias de um bipolar. Penso com meus botões: Será força de expressão ou ele é bipolar mesmo?

Dias depois chego ao trabalho e o tal livro está na minha mesa. Começo a ler e tempos depois o Zé me paga uma visita inesperada. Embora eu ainda estivesse lá pelo terceiro capítulo, o simpático funcionário aposentado da gráfica começa a antecipar a história dando spoiler das páginas não lidas. Estava ansioso para que eu chegasse ao capítulo do primeiro surto, em plena partida de futebol na Assefe. E a narrativa dele, no livro e em minha sala, segue mais ou menos assim:

“No ano de 1974 perdemos nossa primeira filha enforcada no cordão umbilical, tivemos problema na venda de uma casa, nosso carro foi batido e eu ainda me recuperava do estresse do AI-5 no Congresso, com as ameaças contínuas de demissão. Numa sexta de novembro comecei a me sentir mal no trabalho: nervoso com o barulho dos telefones, suando frio, pernas tremiam. Pânico. Procurei um médico do Senado e ele marcou consulta com o psicólogo para a semana seguinte.

Não deu tempo. No domingo eu pirei de vez numa partida de futebol.  Saí da realidade, não falava coisa com coisa. Achava que fazia gols e o juiz anulava. Saí carregado pro hospital. Hoje, mais de 40 anos depois, os colegas que ali estavam, no campo da Assefe, não comentam nada sobre aquele dia.

Ninguém sabe o que é ser tido como doido. No hospital me deram sossega-leão e colocaram uma camisa de força. Quando voltei ao trabalho, 15 dias depois, estava como numa ressaca moral – aquele sentimento de culpa tão grande que faz o alcóolatra beber de novo para tentar acabar com a vergonha que está sentindo. Eu sentia culpa por ter ficado doente e me comportado diferente da sociedade dos sãos. Lamentei ser aquele insano que toda noite faz uma resenha tentando checar se tudo estava na normalidade.

Sofri com o comportamento de alguns colegas, mas no geral fui respeitado. Decidi levantar a cabeça, agora doente, e recomeçar. Contudo, no final do mesmo ano eu voltei ao inferno. Fui internado no HPAP e, por puro engano, levaram-me como indigente para o Sanatório Espírita de Anápolis. Enquanto isso minha esposa me procurava em Brasília inteira, sem conhecer o meu paradeiro. Ninguém sabia dar notícias a ela.

Um dia eu pressenti que ela estava perto. E estava mesmo. Pedi para abrirem a porta e avistei Vera lá longe. Ela me tirou dali e me levou pra Belo Horizonte, minha terra. Lá fui internado e impregnado de remédios. Eu babava, não conversava, estava prostrado. Tomei eletrochoques dos médicos. Outro homem acreditava que a loucura era espírito do mal, sendo assim eu precisava ser exorcizado.

Muitos anos se passaram, idas e vindas – vezes bom, vezes ruim. A última internação foi em 2004. Passei por depressão aguda – aquela dor da alma que morre, o espírito vai deixando de viver e o corpo, sem reação, vai caminhando para a ruína. Tive também momentos de euforia, como nos casos clássicos da bipolaridade, por fim diagnosticada e a razão para o título do livro.

Uma coisa daquele tempo que mudou muito em relação a hoje é a voz do paciente. Naquela época, ele ficava mudo, esperando o acompanhante falar. Hoje a gente conversa com o psiquiatra e só de saber que ele nos ouve, isso muda tudo.

Todos nós adoecemos, uns do fígado, outros dos rins, coração, diabetes, pressão alta, baixa, mas ninguém aceita que tem um parafuso errado. Eu sempre aceitei e levo na brincadeira. Quando perguntam, digo que sou mesmo doido. E mando terem cuidado comigo porque sou isento de julgamento no Judiciário”.

Bem-humorado, esse Zé Luiz. Aliás, que linda história de luta e superação... Obrigada pelo depoimento e parabéns pela coragem, meu novo amigo escritor!

Por: Milena Costa Galdino - Assessora de Comunicação do SIS

Serviço:

Título: Memórias de um bipolar

Autor: José Luiz Ferreira Barbosa

Editora: Lux

São Paulo - 2023

ISBN: 978-65-5913-592-9